No romance Os Sertões, Euclides da Cunha
descreveu que o sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater. Fala
que o sol fadiga, provoca um desapego à vida e o arremesso fatalista para a
morte. Mas também cravou a celebre frase de que o sertanejo é antes de tudo um
forte.
Do sol causticante euclidiano, o
adolescente Cícero Janílson, de 17 anos, o Dinho, se protege com chapéu de
palha, mas não tem dinheiro para comprar um protetor. O chão batido da terra
seca de Serrita, emblemática e afamada pela Missa do Vaqueiro, que Luiz Gonzaga
imortalizou numa canção, é roteiro da sua cruzada pela sobrevivência no dia a
dia.
Dinho cursa a 7ª série do segundo grau,
anda de sandálias havaianas e não sente a terra quente arder nos pés. Com o seu
jumentinho de estimação, entrega água numa casa no sítio Carnaúba retirada de
um açude enlameado, que lhe rende uns trocados para ajudar o pai nas despesas
de casa.
“Vou fazer cinco carradas hoje por R$ 35”, diz, apontando para as
ancoretas sobre o animal. Ali próximo, já no sítio Milha, Fábio Luis Soares, de
19 anos, transporta mandacaru tostado para duas novilhas e um jumento do pai,
que estão esfomeados e abatidos pela mais longa estiagem dos últimos 50 anos.
Fábio é um garoto esperto e educado.
Trabalhador, principalmente. Acorda ao raiar do sol, carrega mandacaru, o que
restou de pastagem para o gado, a manhã inteira, mas pela tarde, já está na
escola, porque deseja sair do mundo das trevas e da escuridão.
“Eu pretendo um dia sair daqui, ter uma
vida decente, mas para isso tenho que estudar. Não falto a uma só aula”, conta,
orgulhoso.
Enquanto Fábio sonha em deixar de ser
refém da seca que mata, humilha e mutila, Heleno Coelho, aos 40 anos, não faz
mais planos para a vida. A morte incessante do gado que cuida com tanto
carinho, pertencente ao lote do fazendeiro Djalma Cidrim, na localidade do
Barro Vermelho, a 42 km
do centro de Serrita, mexeu com a cabeça dele.
“Perdi a batalha contra a seca. Minha
vida hoje é arrastar os bichinhos mortos para aquele cemitério acolá”, diz
Heleno, apontando para o pátio da propriedade de Cidrim, o seu patrão, onde
encontramos, ontem, mais de 40 reses mortas e uma tulha de urubus fazendo
festa. O ofício de Heleno, de levantar gado sem força do chão, é um drama
diário de horror, que choca e comove.
Numa casa de taipa, 500 metros dali, Rosa
Maria Soares, a Rosinha, que nos recebeu desconfiada, espiando por uma janela,
tem ouvido falar do sofrimento do gado do seu vizinho, que só conhece pela fama
de maior criador da região. Ao contemplar Rosinha pela fresta da janela a
sensação imediata é de que está isolada do mundo, completamente abandonada.
É quase isso. A seca já levou o seu pai
para a eternidade, a mãe vive da pensão e até o seu cachorrinho de estimação, o
Bezouro, anda triste, procurando um encosto à sombra de um juazeiro ali
próximo. Rosinha reclama que não consegue nenhum tipo de ajuda dos programas
sociais do governo e lava roupa na cidade para tocar a vida em frente.
Moreilândia é uma cidade bem próxima a
Serrita e vizinha de Exu, terra de Luiz Gonzaga. Tal como as cidades irmãs,
virou deserto. Até aonde a vista alcança, a sua paisagem é um retrato de
desolação. Ali, até os pássaros bateram asas e sumiram. Mas dona Terezinha
Angélica dos Santos, 53 anos, só sai no último pau-de-arara.
Sua via-crúcis quotidiana é encontrar o
que todo mundo ali procura: água de beber. De tanto persistir acabou incluída
no programa de caixas de água portáteis do Governo do Estado. Ontem, sol a
pino, ela foi receber a sua tábua de salvação na entrada do sítio Tamboril,
onde a encontramos em meio a dezenas de homens e mulheres clamando pelo
benefício.
“Consegui o suporte, falta agora água.
Eles dizem que vai chegar no carro-pipa”, conta Terezinha, alegre e feliz por
ter ganho um baldão. Instalados nas casas de famílias carentes, os
reservatórios portáteis do programa de acompanhamento da seca do Governo do
Estado são distribuídos mediante uma seleção na qual o conselho de moradores da
localidade tem voz ativa.
Salgueiro,
Serrita, Bodocó e a própria Exu se projetaram nacionalmente nas canções
do rei do baião, que está sendo festejado no próximo mês. Se estivesse
vivo, completaria 100 anos. O centenário será festejado na seca, triste
sina. A terra de Gonzagão, onde passei à tarde de ontem, também tem
milhares de deserdados, órfãos do poder central e reféns da seca.
Dona
Joana Maria, 82 anos, tem autoridade para falar de seca. Sobreviveu a
todas elas na sua Exu, vindo de João Pessoa, onde nasceu. Trocou o mar
pelo torrão de vidas secas arrebatada pelo amor. O marido José, ainda
vivo, é de Tamboril, distrito de Exu. “Seca maior do que essa só a de
30”, lembra, adiantando que nem toda a família ficou por lá, resistindo.
Tem
filho e netos espalhados pelo País afora. Dos irmãos quem ainda lhe
fazem companhia ainda resiste por lá o divertido José Gomes dos Santos,
chegado a uma prosa regada a água que passarinho não bebe. É daqueles
que tem humor para tudo, até para revelar a idade. “Numa perna só, 78”,
diz, dando gargalhadas.
É assim a gente do mundo euclidiano, de vidas secas.
Do Blog do Magno Martins
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